Este volume reúne, em traduções diretas, os principais autores da literatura clássica russa. Aquela que vai do “fundador da literatura nacional”, Alexander Púchkin, até o “primeiro modernismo” de Tchecov e Górki. Por clássico não se entende aqui, obviamente, o estilo que a história literária dispõe antes do romantismo e do naturalismo. Trata-se, na verdade, de uma acepção mais geral, apontando em certa tradição os autores que, apesar do tempo em que escreveram, reencontram no presente elementos e potências que os tornam contemporâneos.

              Além disso, no caso destes clássicos russos, para além de suas diferenças de época e estilo, há algo que os unifica e os contrapõem à nova literatura russa nascida depois, com a Revolução e as vanguardas. É que eles são, ou pretendem ser, nas palavras de um provérbio russo usado por Gógol em uma epígrafe, um “espelho”, feito para lançar alguma luz sobre as sombras da sociedade russa de seu tempo.[1]

              Mas como a sociedade é feita de indivíduos, essas luzes se lançariam não apenas sobre a sociedade em si, ou seja, as formas e os modos das interações de classe e interpessoais (cujo exemplo máximo é a obra de Tolstói), mas também sobre a própria “alma russa” – certa especificidade eslava quase metafísica, que marcaria e determinaria o caráter dos membros de tal sociedade (numa palavra, a “russificidade”).

Ocorre que literatura não é, felizmente, sociologia. E se tampouco é psicologia, isso não impede que ao menos a grande literatura tenha o poder de ser mais do que apenas literatura. Ela pode então, de fato, espelhar essa “alma” – que é russa em parte, e em parte universal, para parafrasear a famosa frase atribuída a Tolstói. Será em todo caso dessa literatura que emergirá aquele considerado, ao lado de Shakespeare, o maior analista da psique do homem moderno, Dostoiévski.

Um fractal é uma figura geométrica em que cada parte recupera a estrutura do todo, assim como a figura de ramos divergentes de um pequeno galho incorpora a figura maior de toda a árvore. De modo semelhante, cada texto deste livro contém toda a grandeza da literatura russa de seu tempo. Um espelho multifacetado, além de cristalino o bastante para também lançar suas luzes sobre as sombras de nosso próprio tempo.

Mas, espelho ou não, literatura é forma literária. A literatura russa posterior seria dominada pelos radicais experimentos do período vanguardista, iniciados na primeira década do século XX e abruptamente encerrados nos anos 1930, com a imposição do “realismo socialista”. Felizmente, houve tempo para o primeiro modernismo russo, entre outras coisas, revolucionar a narrativa curta.

Se na vida civil Tchecov era um médico que atuava como clínico, na literatura foi um cirurgião que amputou do conto tudo que não fosse sua medula. Os contos de Tchecov, como regra, não têm enredo, “intriga”, nem caminham para um clímax ou uma resolução. São um recorte de tempo e de circunstâncias, uma câmera que de repente passa a acompanhar seus personagens (principalmente suas falas cotidianas) e de repente os abandona. O radical realismo de Tchecov determina a própria estrutura (ou quase desestrutura) de suas narrativas. William Gerhardie, escritor, crítico e acadêmico anglo-russo (1895-1977), faz uma síntese precisa ao dizer que a grande conquista de Tchecov foi o abandono do “enredo de eventos” por algo “desfocado, interrompido; [...] a fluidez e a aleatoriedade dão forma às histórias”.[2] O conto do século XX, de Hemingway a Cortázar, para citar apenas dois marcos possíveis, é fortemente tchecoviano.

Já o romance será, em grande parte, dostoievskiano. Dostoiévski, a fim de dotar a prosa ficcional de instrumentos calibrados para registrar os mecanismos mentais do indivíduo moderno, e não a sociedade moderna, como fizeram o realismo e o naturalismo, teria, entre outras coisas, de criar ritmos narrativos e uma maleabilidade de linguagem (prenunciando o “fluxo de consciência”) que abririam caminho tanto para Joseph Conrad, Joyce, Virgínia Woolf e Faulkner quanto para Phillip Roth, ou seja, a ficção mainstream do século XX.

O “realismo socialista” de Stálin foi venenoso o bastante para quase matar a literatura russa em seu próprio solo. Mas não para impedir que seu vigor viesse a nutrir boa parte da literatura mundial. Assim como Shakespeare é um dos “inventores” do homem moderno, o homem “hamletiano” cuja autoespeculação hipertrófica atrofia sua resolução e inibe sua ação, a literatura russa é uma das “criadoras” do homem contemporâneo. Entre outras coisas, somos fragmentários, circunstanciais e inconclusos como Tchecov e presas de densas incertezas cheias de palavras como Dostoiévski  (além de incuravelmente saudosos de certa grandeza utópica de Tolstói). Os russos, de alguma forma, somos nós.


[1] “Não culpe o espelho se a cara é torta”. Em contraponto, a nova literatura russa do início do século XX teria outros objetos e objetivos: não refletir o presente e muito menos o passado, mas educar as massas para o futuro socialista, ajudar a criar o “homem novo” nascido da Revolução e adequar a linguagem aos tempos industriais.

[2] Anton Chekhov: a critical study (1924), citado por William Boyd, “A Chekhov lexicon”, The Guardian, 3 de julho de 2004 (acessível em < http://www.theguardian.com/books/2004/jul/03/classics>).

Share this post