Em “Nota para um conto fantástico”, Jorge Luis Borges diz haver na derrota uma dignidade que a vitória não conhece. Concordo. Mas Borges, não fosse tão indiferente ao futebol, poderia ir mais além. Pois no esporte jogado com os pés, há derrotas não só mais dignas, mas também muito mais gloriosas que a própria vitória. E não falo aqui de meros prêmios de consolação.

O caráter do verdadeiro torcedor é forjado pela derrota, pelo choro no alambrado. Quem quiser amar um time, deverá amá-lo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E há clubes que chegam a construir toda a sua mística em torno da derrota. No Brasil, temos na Ponte Preta o caso mais notório. Em 2020, o clube campineiro completará 120 anos sem um título. E falem o que quiser: entre o Bugre e a Macaca, somos todos alvinegros.

Isso para não falar em clubes vitoriosos que, por vocação, se orgulham mais de suas derrotas. Meu pai, um corintiano fanático que viveu parte dos 23 anos de jejum e cresceu ouvindo de meu avô a história épica das derrotas para o Santos de Pelé, me dizia em 2012, na final da Libertadores, que não ficaria triste se perdêssemos aquele título para o Boca Juniors. A mística, segundo ele, só aumentaria, e seríamos mais felizes ainda quando chegasse a vitória – como fomos felizes em 77, quando lavamos a alma sem eira nem beira. Forjado no choro de alambrado, meu pai não olhava para o jogo, mas para a História.

E o que dizer então do Botafogo, o clube que recusa a triste vulgaridade da vitória a qualquer custo? Também o Fogão ostenta um jejum, 21 anos, e seus torcedores se autodenominam sofredores. Pode haver coisa mais bela? Até seu apelido, “Estrela Solitária”, recende a melancolia. Garrincha e Heleno de Freitas são ídolos feitos à sua imagem e semelhança. E Borges, se gostasse de futebol e fosse brasileiro, certamente seria botafoguense.

Quanto às seleções, não posso deixar de dizer que a Espanha pode até ter alegrado seu povo ao ganhar a Copa de 2010, mas todo o resto do mundo se sentiu traído com essa vitória. Ganhar que ganhem as Itálias e as Inglaterras, com seu futebol pragmático. Mas a Espanha?! A função da Espanha, até então, era levar poesia às copas do mundo. E não há nada de menor nisso. Em 2010, apesar de derrotada, quem ganhou foi a Holanda. Hoje, oito anos depois, a Laranja Mecânica continua ostentando a sua mística.

E falando em Espanha, um bom exemplo de que a derrota pode ser mais gloriosa que a vitória está em sua poesia – sua poesia feita com palavras, não com os pés. Falo de dois poemas: “Ode a Platko”, de Rafael Alberti, e “Contraode ao poeta da Real Sociedad”, de Gabriel Celaya. Ambos os poemas tratam da histórica final da Copa del Rey de 1928, entre Real Sociedad e Barcelona.

Alberti não se interessava tanto por futebol, mas, na ocasião, passava uma temporada na Cantábria, local da primeira partida da final. Acompanhando ninguém mais ninguém que Carlos Gardel, o poeta acabou indo ao jogo. Seu poema é uma ode olímpica, à la Pindaro, dedicada a Franz Platko, lendário goleiro do Barcelona. O mote é uma breve cena do jogo, em que Platko, depois de uma dividida com o atacante da Real Sociedad, levanta ensanguentado em meio aos jogadores adversários, agarrando a bola como quem leva à sua polis o velocino de ouro. Eternizado pela ode de Alberti, o goleiro entraria para a história como o herói daquela final, vencida pelos catalães após três jogos acirradíssimos, violentos até.

Gabriel Celaya, então com 18 anos, também assistiu àquela primeira partida. Mas seu poema, como indica o título, é uma “contraode”, uma visão desencantada do jogo, em tudo distinta à de Alberti. Celaya – nem preciso dizer – era torcedor da Real Sociedad, e em seu poema o foco passa de Platko, o herói épico, para a figura do juiz ladrão, clássico personagem do drama futebolístico.

Pessoalmente, prefiro o poema de Celaya, que cheira mais a cancha, mais a choro de alambrado e a ressentimento curtido em barris de carvalho do que a grandiloquente ode de Alberti. Traduzo-o aqui como prova cabal da superioridade da derrota:

E lembro também nossa tripla derrota
naqueles jogos contra o Barcelona,
que se ganharam de nós, não foi por Platko
mas por dez pênaltis claros, roubados.
Camisas azuis e brancas voavam
no ar, felizes, como pássaros livres
assaltavam a meta defendida com fúria
e nada pôde então toda a inteligência
e toda a entrega dos bascos
que lutavam contra a raiva cega
e o barro e as entradas criminosas e um árbitro comprado.
Disso todos lembramos, e talvez melhor que você,
meu querido Alberti, me lembro eu,
porque lá estava e porque vi o que vi –
o que você esqueceu, mas sempre
recordaremos: ganhamos. Justiça feita, ganhamos,
e há coisas que não mudam os falsos resultados.

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