Cuidado. Quando uma grande editora adquire os direitos para publicar a obra de algum autor, é bem provável que ela transforme nanicos em gigantes, trastes em gênios, fraudes em sumidades. Um incrível arranjo entre editora, imprensa, livrarias, crítica etc. torna quase todo tipo de distorção possível. Todo cuidado é pouco. No entanto, por mais que a malha do marketing recubra tudo, dizendo que estamos sempre diante do “maior dos maiores”, e todo o discurso ao redor pareça estar de certo modo contaminado pelos mesmos interesses comerciais dos editores, o leitor tem que saber nadar em meio a essa corrente toda, como quem tenta respirar enquanto é atacado por ondas e mais ondas de um mar que não descansa enquanto não consegue engolir sua presa.

Digo tudo isso para afirmar que, no caso desse escritor esquisito que é Roberto Bolaño (1953-2003), tão unanimemente aclamado, cada leitura parece confirmar que estamos mesmo diante de um mito que, até pouco tempo, tinha ossos, carne e uma capacidade impressionante de transformar em textos tudo aquilo que mais profundamente nos atormenta – em política, em cultura, em literatura. Na vida. Depois de muitas e muitas páginas, mesmo ao leitor mais desconfiado é quase inevitável confessar que “Bolaño é isso tudo mesmo”. Para nossa alegria.

Caí ontem à noite novamente nas tramas de Bolaño após me deparar com quatro fotos em que o escritor participa de uma leitura de poesia numa livraria (encontrei-as no facebook do Eduardo Sterzi, mas são de Mónica Maristain Melussi, última pessoa a entrevistar Bolaño, pelo que me consta). São muito impactantes.

A não ser que, estranhamente, se abra diante daqueles senhores (Bolaño, para quem não o conhece, é o de cabelos cacheados) um largo pátio cheio de fãs e curiosos, tudo indica que era um evento desses em que um grupo de 10, talvez 15 pessoas dá atenção a um outro grupo, não muito menor, que expõe ali suas vísceras, enquanto na calçada em frente passa sem espanto todo o restante da humanidade. Eventos como esses que escritores estão acostumadíssimos a fazer, creio que em todo o mundo. Nada da grandiosidade que o peso atual de seu nome poderia fazer supor. Nada dos holofotes que seu corpo literário recebe hoje.

Talvez as fotos (me?) impactem tanto porque estamos acostumados a ver os gigantes quando já foram transformados em bustos de mármore ou fazem poses quase antinaturais nos poucos momentos de glamour a que a literatura costuma levar. Em resumo: quando não são mais eles mesmos que estão ali. Sim, fotos não são mais exatamente uma novidade, mas na longa história da literatura universal é pequena a fração que foi acompanhada por imagens – imagens comuns de escritores absolutamente incomuns, não aquelas tão solenes que mais facilmente encontramos. Mesmo no século XX, tão fotografado e filmado, fotos como estas de Bolaño são raras. E é triste que sejam raras, porque são elas que nos permitem ver, com mais clareza, onde estão os pés dessas cabeças geniais. Bem perto dos nossos.

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